Nilton Santos
O lado perverso da paixão

Sempre fui apaixonado por futebol, até porque não se tinha muitas outras coisas para fazer, e para jogar só se precisava de uma bola, dois pares de chinelo e espaço que havia de sobra. Organizávamos times que se sustentavam apenas na amizade e em uma bola. Uniforme era luxo. O dono da bola tinha escalação garantida, mesmo que não jogasse nada. O primeiro time com camiseta foi o Guarani, mas não tínhamos um rival, daí surgiu o Estrela. Toda semana era de clássico Guarani x Estrela, jogo quente onde quem perdia ficava arrasado e o vencedor tinha o direito àquele sorrisinho irônico no canto da boca que era duro de aguentar, mas sempre tinha a próxima semana para tentar dar o troco.
O pecado mortal era trocar de lado, o cara queimava o filme, a menos que se humilhasse pedindo para voltar. Na nossa inocência víamos o futebol somente como algo lúdico, não alcançávamos a dimensão da realidade do negócio futebol, que ao longo dos anos se tornou um dos maiores do mundo, para poucos, pois a maioria dos jogadores sobrevive com minguados salários, isso quanto o clube paga em dia. Nessa semana o presidente do todo poderoso Flamengo, em rede nacional, foi defender a volta dos jogos, alegando os enormes prejuízos que os clubes vêm experimentando com a paralisação das atividades, isso poucos dias após o anúncio da renovação do contrato do seu técnico por um ano por 23 milhões de reais....
Infelizmente o presidente do rubro negro não disse nenhuma palavra sobre os dez meninos que morreram queimados no dia 8 de fevereiro de 2019, já que a estratégia do clube é vencer as famílias das vítimas pelo cansaço, especulando um acordo de ocasião, revelando o lado obscuro do negócio futebol em suas altas esferas. Em nome da grana manda-se às favas todo o resto: a vida dos jogadores que sequer são ouvidos sobre os riscos do retorno aos gramados e, principalmente aos pais que perderam seus filhos que, sonhando com o sucesso, em dar uma vida melhor para os pais, foram entregues ao clube ante a promessa de por eles zelar. Hoje, conhecendo melhor a realidade do negócio, confesso que já gostei mais de futebol nos tempos em que Guarani e Estrela, onde jogávamos no campo dos sonhos onde só pensávamos em ganhar jogo para dar aquele sorrisinho maroto na cara do perdedor.
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